Tenho de me desprender. Efeito contínuo de regresso a um novo eu. Sei que isso para muitos não existe. Somos apenas nós próprios com a nossa vida única. Paridos de pai e (mais) de mãe pelas únicas dores a que cada um obrigou a progenitora a sofrer.
Sofrer?
Quantas vezes eles se enredaram de prazeres até eu surgir para a possibilidade? Ninguém quer saber do amor dos pais na concepção. Na dura ventura da repitição a que se sublimaram. Sou prazer agora pelo prazer deles anteriormente. Não falo em vão, mesmo eles não estando. Deram o prazer e a vida. Viveram e morreram, para eu ser um ser.
Um ser?
Serei pela matéria provavelmente Um. E a minha multiplicação? A prova de que sou como eles. Que sou mais do que um. Criação. Acto de um deus. Se Ele existe e nos criou a todos, então deve nos ter oferecido o condão dessa imensa potência. Infinitos de ser.
E o prazer d'Ele?
Orgasmos elevados ao infinito do gozo imagino. Calhou-nos um pouco. Uma ínfima duma raíz quadrada dessa ínfima razão. E alguns de nós morrem por esse prazer. Tantos! Outros porém, multiplicam-se. Fazem filhos. Tornam-se deuses e progenitores da vida. Deuses!
E eu? Um pai. E um solitário descobridor de outros "eu". Sim. Longe da matéria e até quem sabe também com ela. Mudar. Transmutar de um físico meu para outro. Mudei. Larguei dependências que me fizeram mais velho do que agora. A pele que se enrugou e se tornou idosa. E o agora que regenerou noutra pessoa, sendo eu todavia. Mas outro. Regresso ao que sentia ser para mim. Um ciclo mais. Um novo caminho. Outro eu. Regresso àquele passado em que todos dizem "tivesse eu aquela idade sabendo o que sei hoje". Sei e tenho a idade que me apraz. Só quem morreu sabe como se faz.
Reerguemo-nos.
Vamos à luta do que queríamos e encontramos a criação dessa aventura. Quando a matéria desistir eu já terei vivido mais vidas do que a única que me foi conferida. Serei o morto mais feliz. Estarei na boca dos beijos oferecidos e roubados. Estarei no ouvido de uns fados. Estarei no peito tatuado de brisa. Estarei na filha. Estarei nos netos se ela for deusa com o amor dela. Estarei na vida deles e dos que me quiseram como matéria e palavra. Estarei noutra vida desmaterializado.
Mas fui eu e outros de mim.
Viajo dentro de mim. Encontro sítios que nunca vi antes. As pessoas são os meus novos sentimentos, emoções, cheiros, sabores. Serão toque e palpitação. Serão a novidade que nos faz diferentes nesses novos lugares. Como quem vai mesmo viajar noutras terras desta matéria. Já viajei também a alguns desses lugares. Nunca me pude lá deter tanto tempo. Mas mudei um pouco por lá. Mas nunca para a nova pessoa em que me vou encontrando. É cá dentro que eu mudo. Às vezes tão profundamente que a cara e o corpo são doutro. Eu, mas outro.
Quero pensar que sou agora Amor. Mesmo não O conhecendo bem. Sei porque a minha filha existe e no seu olhar e nas suas palavras uma grandeza de espírito se transcende em tudo. E em mim também, suponho. Vejo-a de longe, desagarrando-a da minha vida com essa força. Deixando que a força da vida seja a dela. Que ela seja ela própria. Várias "elas" se assim quiser. Vejo de longe e abraço de perto. Quero que ela se habitue a ver-me de longe. Porque mudo muito. Porque vou muitas vezes para tão longe. Mato-lhe a saudade aos poucos esperando não levar o Amor pelo mesmo destino. Acho que é por amor que o faço. Sou. Reajo a mim e o que ela é da materialização do amor. Mas acho que ela é mais. Essa alma que vou levar comigo quando eu tiver também de ser apenas alma. Quando a minha matéria "desexistir". Desistir. Com esse erro que somos. Como esse erro que todos somos. Apenas não existe um erro. O que somos nos nossos filhos. E como humanos somos matéria de Deus. Pequenos deuses a existira pelo prazer. Pelo amor de sermos tantos nós.
E depois eles quando nós já não formos matéria. Ou eles antes, e isto é um eterno regresso, e eles nos deixaram ser. E eu tantos. Os meus pais, os pais deles e toda a vida que existia. Mas também ela me deixar ser todos os meus outros eu, até descobrir o Amor que regressa a Ela.
Ela.
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